Ócio e promoção da saúde

Autores

  • José Clerton de Oliveira Martins

DOI:

https://doi.org/10.5020/18061230.2015.p297

Resumo

A palavra “ócio” deriva do latim otium, que remete ao fruto das horas vagas, do descanso e da tranquilidade, carregando consigo o sentido de ocupação suave, prazerosa e desejada. Porém, como o ócio abriga a ideia de repouso e de parada apreciada – enfim, de um momento para deixar vagar os pensamentos a partir de uma disposição contemplativa –, foi fácil tomá-lo como sinônimo de ociosidade nas sociedades que atribuíram ao trabalho um caráter divino. Essa compreensão do ócio como atividade nociva é totalmente oposta ao que se reconhecia em sua concepção original grega, como âmbito da recriação da vida, de contemplação e apreensão da integridade humana. O percurso sócio-histórico das sociedades contemporâneas reafirmou o trabalho como fonte de todas as virtudes, e, consequentemente, a jornada de trabalho aumentou de maneira considerável, o que ocasionou descompensações psicossomáticas de diversas ordens na maioria das pessoas, conforme demonstraram críticos da mistificação do trabalho e de seu excesso desnecessário(1). Nesse panorama, na atualidade, o conceito de ócio tem sido fonte de controvérsia. No Brasil, após a popularização da obra de um sociólogo italiano(2), novas possibilidades foram convocadas sobre a palavra, fomentando discussões e estudos mais aprofundados sobre o termo. Tais discussões apontaram alguns aspectos interessantes. Por exemplo, foi considerada a perspectiva de que o até então “pai de todos os vícios” carrega um valor em si, uma autonomia subjetiva pautada em livre escolha e autotelismo, para além do lazer usual (que apenas alcança o significado de compensação escapista às insatisfações do trabalho, representando um âmbito para a recuperação da força laboral). Esses novos encaminhamentos despertaram interesses diversos e orientam, agora, novas elaborações sobre o ócio numa contemporaneidade demarcadamente consumista, apressada e acelerada(3). Do pensamento de Aristóteles até hoje, filósofos, teóricos e estudiosos, na tentativa de precisar a natureza do ócio, definiram um conceito que consubstancia a inter-relação de componentes como satisfação, realização, felicidade, gozo, fruição e bem-estar. Assim sendo, o ócio diz respeito a uma experiência gratuita e necessária, que resguarda relação íntima com o desenvolvimento do sujeito. A compreensão do ócio a partir desse ponto de vista se relaciona com a vivência de experiências prazerosas e satisfatórias, portanto(4). A palavra “ócio” é sinônimo de experiência desejada e apreciada, resultado de uma escolha livre(5). Dentro desse contexto, é preciso ressaltar a atenção dada ao sentido atribuído por quem vive a experiência. Pois o ócio está vinculado à forma de ser de cada um, configurando, portanto, uma expressão de si(5). É interessante acrescentar que, na perspectiva aqui tomada, a experiência de ócio não é dependente das variáveis atividade ou tempo, nem do nível econômico ou formação de quem a experimenta; ela está relacionada com o sentido atribuído por quem a convoca com um fim na própria experiência. As apreensões do ócio também se articulam com temas como a educação. Critica-se de forma categórica a concepção estritamente utilitária do sistema educacional atual, afirmando que ele ignora as necessidades reais dos sujeitos e que os componentes culturais da formação do conhecimento ocupam-se em treinar os indivíduos com o mero propósito de qualificação profissional – esquecendo, dessa maneira, os pensamentos e desejos pessoais dos educandos, levando-os a preencherem boa parte de sua existência com temas demasiado amplos, impessoais e sem sentido aparente, voltados mais para interesses externos imediatos, o que gera nas pessoas desapropriações de diversas ordens(6). É preciso atentar para o fato de que o ócio não deve ser identificado com o tempo livre, uma vez que este não define a experiência humana em si. A identificação que se originou entre ócio e tempo livre é produto dos estudos da sociologia do trabalho, difundidos de forma ampla. Tal fato dificultou a compreensão do ócio, pois a sociologia do trabalho não contempla sua percepção psicológica. Nessa perspectiva, não se pode afirmar a priori que no tempo liberado das obrigações residem experiências de ócio. A expressão “tempo livre” se torna importante nessa relação por causa da palavra livre, que sugere um exercício humano voluntário de identidade, desejo, reconhecimento e autorreconhecimento. A partir desses enfoques psicológicos, o ócio vem sendo definido como “liberdade de e para”(7). O ócio, como experiência humana, está relacionado a valores e significados subjetivos profundos; e apenas assim o ócio pode ter sentido enquanto experiência significativa positiva, fonte de desenvolvimento humano, bem-estar e prevenção à ociosidade negativa. Para o entendimento do que vem a ser uma experiência transformadora, compreende-se que ela foge ao âmbito do cotidiano vulgar, dado o componente que envolve a ruptura subjetiva na determinação da atitude para a experiência consciente – escolha desejada e encontro permitido. Tais detalhes promovem um sentido diferente a esse tipo de experiência: elas são as chamadas experiências verdadeiras, as que tocam e transformam os indivíduos(8). A experiência comum, por outro lado, é aquela que se relaciona com qualquer ação da vida cotidiana, e nela estão inseridas as rotinas, em que tudo acontece e “nada nos toca”, uma vez que há ausência de sentido nessas atividades trivializadas. Em um encaminhamento semelhante, foi apresentado o flow(9) (ou, nas apreensões em português, experiência ótima). A partir disso, a chamada experiência de fluxo é demarcada por uma sensação de plenitude e integração percebida entre o sujeito, a ação e o ambiente. Mergulhado em uma espécie de fluxo mental caracterizado pelo prazer e pela sensibilidade aflorada, o sujeito experimenta um fluxo vital, reconfortante. Quando uma pessoa passa por uma dessas situações, uma das metas centrais do self será a de seguir experimentando-a ou buscar outras experiências similares, convertendo-as em uma influência significativa e marcante que implica em saúde e qualidade de vida(9). Na mesma direção, os estudos desenvolvidos no Instituto Multidisciplinar de Estudios de Ocio da Universidade de Deusto, em Bilbao (Espanha), orientam a possibilidade do ócio como estratégia da promoção de saúde, haja vista as repercussões positivas na população frente ao baixo custo dos investimentos para tal. A partir desses estudos, observa-se que a melhora da saúde é uma das consequências associadas à experiência de ócio. Aponta-se que os impactos positivos na saúde vêm sendo a principal justificativa para projetos que tomam tais experiências como fator de promoção de saúde. Como exemplo, investe-se na prática esportiva, que aporta benefícios de natureza diversa, tais como impactos fisiológicos (o fortalecimento dos ossos, por exemplo) e psicológicos (o desenvolvimento da capacidade de empatia e das habilidades cognitivas, impactos educativos, transmissão de valores e assim por diante). Sem dúvida, tais benefícios repercutem em âmbitos como o trabalho, a família e as relações(10). Nessa perspectiva, o sujeito que convoca experiências de ócio como um valor e uma prática sistemática promove o desenvolvimento de sua autonomia, ocasionando o aumento da autoestima e podendo, ainda, obter satisfação e relaxamento. De forma direta, isso tem impacto nas relações sociais desse indivíduo, e tais benefícios nomeado como“intermediários”. A partir deles, alcançam-se os benefícios “finais”: saúde geral, sensação de bem-estar e qualidade de vida(11). Cada vez mais, no âmbito da saúde, o ócio vem sendo reconhecido pela sua força, tanto no fator preventivo quanto no terapêutico. Verifica-se na terapia com pessoas depressivas, por exemplo, a recomendação de apoio no reforço dos vínculos, a partir de experiências nas temporalidades sociais de jogos, desenvolvimento do gosto por hobbies, passeios etc. No entanto, ainda se vive em tempos em que o horário do trabalho se estende a outros âmbitos da existência, colonizando as temporalidades próprias para a fruição de experiências verdadeiras, livres e plenas de sentido subjetivo. Sabe-se, porém, que nessas experiências residem a potência da apreensão de si, portanto, faz-se necessário cultivar seu valor. Assim, descobrir o ócio como um valor a ser conquistado por suas potencialidades é vital para a saúde – mas, é claro, esse não é unicamente o seu fim, pois, como ensinou Aristóteles, o fim do ócio reside nele próprio. O ócio é autotélico, mas advêm dele os benefícios para uma existência em bem-estar e satisfação vital.

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Referências

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Publicado

2015-09-30

Como Citar

Martins, J. C. de O. (2015). Ócio e promoção da saúde. Revista Brasileira Em Promoção Da Saúde, 28(3), 297–304. https://doi.org/10.5020/18061230.2015.p297

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Editorial