escalões empresariais dos países de primeiro mundo. Para Chandler (1984), uma característica distintiva dessa fase do capitalismo era exatamente a existência de uma hierarquia de gerentes no contexto da empresa integrada verticalmente. Assim, o cenário da grande empresa era de uma hierarquia composta de numerosos gerentes (planejadores, organizadores, controladores) e de uma igualmente numerosa massa de trabalhadores (executores, controlados).
Pode-se afirmar que o capitalismo burocrático de que tratam Boltanski e Chiapello (2009) corresponde, em termos sociológicos, ao capitalismo monopolista tipificado por Braverman (1987), numa perspectiva mais economicista, ou ao capitalismo gerencial de Chandler (1984), mais focado na realidade organizacional.
É no cenário da passagem do capitalismo familiar para o capitalismo burocrático que o sistema taylorista-fordista emerge e se consolida. Anteriormente à proposta de Taylor (2012), os antigos modelos de produção não delimitavam maneiras de executar a tarefa, cabendo também ao trabalhador a escolha do instrumento de trabalho. O cenário do século XIX era de uniformidade e padronização praticamente nulas para realização de tarefas, sem codificação e análise sistemática para orientação do trabalho (TAYLOR, 2012).
Segundo Taylor (2012), dentre os sistemas de administração vigentes à época, a administração por iniciativa e incentivo era a melhor opção para os dirigentes. Por esse “modelo gerencial”, a única forma de conseguir a iniciativa dos trabalhadores era dar-lhes incentivos especiais, como melhoria do ambiente de trabalho, promoção, aumento salarial, dentre outros. Imerso nesse contexto e fortemente influenciado pelo movimento works management1, respondendo às demandas da época, Taylor apresenta a administração científica visando implementar
o controle sobre o trabalho e trabalhador. Dessa forma, instalou na atmosfera da administração científica a era do homo economicus, indivíduo valorizado a partir da sua produtividade. O modelo produtivo foi testado e aplicado nos Estados Unidos em meados dos anos 1880, porém, só formalizou-se em 1911, por meio da obra Princípios da Administração Científica (MARTINS, 2001; TAYLOR, 2012).
O sistema da administração científica baseia-se em quatro princípios: planejamento, seleção, controle e cooperação. O planejamento refere-se à substituição do critério do operário pelo desenvolvimento de uma ciência que especifica como as tarefas devem ser realizadas. A seleção do trabalhador remete à instrução e treinamento do operário. Devia-se encontrar o biotipo ideal, o “homem do tipo bovino”, devendo “[...] exercitá-lo por meio de instrutor competente em novos métodos, até que o trabalho prossiga regularmente, de acordo com as leis científicas, desenvolvidas por outrem [...]” (TAYLOR, 2012, p. 55). O terceiro princípio é o controle, efetivado pela constante supervisão da direção, para que as tarefas sejam desenvolvidas com base nas leis científicas do trabalho, surgindo, assim, a figura do instrutor. O último princípio baseia-se na cooperação, que tem a função de dividir equilibradamente as responsabilidades, na qual “[...] a administração encarrega-se das atribuições para as quais está mais aparelhada e os operários das restantes” (TAYLOR, 2012, p. 84).
O taylorismo enfatiza a tarefa, a sua racionalização, com consequente redução do tempo necessário para desenvolvê-la, e vendo, neste ponto, o da realização da tarefa em menor tempo, uma fonte de eficácia (DURANTE; TEXEIRA, 2008). Com o conhecido estudo de tempos e movimentos, buscavam-se normas e procedimentos sistemáticos a fim de eliminar movimentos desnecessários, determinando o melhor método e tempo para execução (SENNETT, 2002). Desde o ponto de vista estrutural da empresa capitalista de então, associa-se ao taylorismo um padrão de estrutura rígida e hierarquizada (MERLO; LAPIS, 2007).
A partir do estudo dos tempos e movimentos, as atividades foram decompostas em parcelas. Essas tarefas não deviam ser ocupadas por qualquer trabalhador, mas pelo homem certo. Com base nisso, Taylor intitulou a máxima “o homem certo no lugar certo” (MERLO; LAPIS, 2007,
p. 63); isto é, aquele trabalhador cujo corpo se ajusta adequadamente
flexível e os investimentos em tecnologias de base microeletrônica com grupos heterogêneos, que buscam redução de estoque, induzindo a um processo de terceirização do trabalho por parte das empresas capitalistas centrais (FARIA; KREMER, 2004; FLACH et al, 2007).
A mudança no modelo de produção toyotista foi iniciada pelo engenheiro Taichi Ohno, o qual desenvolveu máquinas que permitiam maior flexibilidade na manipulação das ferramentas. A partir disso, constatou que, quando se produzia pequenos lotes, os custos atrelados à produção eram menores (MAROCHI, 2002). Na década de 70, o toyotismo passa pela primeira fase, caracterizada principalmente pela implementação dos Círculos de Controle de Qualidade (CCQ’s). A segunda fase do processo, ocorrido a partir da metade dos anos 80, envolve a implementação do Just in time e do Kanban; além disso, há a implementação do Controle Estatístico do Processo (CEP) e dos programas de qualidade total (FARIA; KREMER, 2014). Ohno (1997, p. 25) defende que “os dois pilares necessários à sustentação do sistema são: Just in time e autonomação, ou automação com um toque humano”. O primeiro conceito refere-se ao momento certo em que os objetos necessários chegam à linha de produção em quantidades corretas. E
o segundo conceito remete-se ao envolvimento do capital intelectual do homem com a máquina.
Merlo e Lapis (2007) abordam que essas técnicas apresentadas ao Ocidente possuem como objetivos principais a elevação na produtividade, redução nos custos, além da promoção de um controle preciso na qualidade. Com relação à redução nos custos de produção, também conhecido como Kaizen (melhoria contínua), pode-se afirmar que é um dos principais objetivos do sistema de produção Toyota. Essa redução envolve a busca pela economia na mão de obra, extinguindo todos os intervalos no processo produtivo e investindo no aumento do ritmo máximo de trabalho. É importante destacar a aceitabilidade por parte dos trabalhadores, devido às remunerações serem diretamente atreladas à redução de mão de obra (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009).
Desta forma, tem-se que os principais objetivos que configuram
o Sistema Toyota de Produção envolvem a eliminação de desperdícios visando ganhos de produtividade, a qual é obtida também por se “produzir muitos modelos em pequenas quantidades”. A produção em pequenas séries de variedade cada vez maior envolve a preocupação em aproximar-se dos desejos dos consumidores. Esse fato é o que irá caracterizar a passagem da produção em massa para a “produção flexível” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 132). Há uma necessidade de pôr mais produtos no mercado, com uma maior rapidez (SENNETT, 2002). A partir de então, as empresas passaram a superar a rigidez advinda do modelo taylorista-fordista e a dispersar-se geograficamente para novos nichos mercadológicos (MERLO; LAPIS, 2007).
Polivalência e rotatividade de operações são formas adotadas para garantir a continuidade no ritmo do processo produtivo (MERLO; LAPIS, 2007). Ao supervisor, cabe o “esforço para transformar a movimentação dos operários em trabalho” (OHNO, 1997, p. 24). Sobre a dimensão organização do trabalho, o sistema Toyota possui como principais pontos a eliminação rígida das tarefas, contudo, exigia-se um longo treinamento a fim de aperfeiçoar o indivíduo nas funções (multivariedade de funções), a valorização da experiência do trabalhador, a eliminação da especialização nas tarefas, uma organização horizontal, o trabalho em grupo, o envolvimento do trabalhador com os objetivos da empresa, a eliminação dos níveis hierárquicos, a não distinção entre executivos e não executivos, e gestão participativa (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009; FLACH et al., 2007; MAROCHI, 2002; MERLO; LAPIS, 2007).
Esta é a era das organizações flexíveis, em que impera o “flexitempo”, pelo qual os turnos fixos são substituídos por pessoas trabalhando em horários distintos (SENNETT, 2002, p. 66). Boltanski e Chiapello (2009) abordam que um dos motivos para que se adotem organizações flexíveis é a concorrência acirrada, como forma de serem sempre adeptas às transformações, e com mão-de-obra intelectualmente instruída, na qual essa força de trabalho não possa tornar-se improdutiva e facilmente descartável.
No que tange às qualificações necessárias para uma organização flexível, tem-se as aptidões portáteis, que envolvem o saber ouvir e ajudar o próximo, estando sempre aberto a novas experiências (SENNETT, 2002). Exige-se que haja uma gestão realista pautada nas mudanças constantes e no ambiente de negócio turbulento (OHNO, 1997). O modelo Toyota demanda trabalhadores mais escolarizados, com raciocínio lógico e capacidade de relacionamento interpessoal, sempre motivado e engajado com os objetivos da organização. O controle rígido é substituído por líderes motivadores (MERLO; LAPIS, 2007). Como diz Ohno (1997, p. 88), “o Sistema Toyota de Produção representa uma revolução no pensamento. Porque ele exige que mudemos, fundamentalmente, nossa maneira de pensar”.
As diversas nomenclaturas para qualificar o espírito do tempo, no mundo do trabalho atual, a chamada “era da flexibilidade” (reestruturação flexível, produção flexível, organização flexível, gestão flexível, etc.) apresentam um cenário em que várias dimensões do contexto de trabalho, e da vida como um todo, tendem a ser influenciadas por essa nova lógica ou novo paradigma: o da flexibilidade. Ao nível do trabalhador individual, fala-se, por exemplo, de flexitempo (SENNETT, 2007), em que suas experiências laborais passam a se afastar do antigo padrão burocrático (de um corpo inscrito num tempo e espaço padronizados e rotineiros), para se aproximar de uma nova “rotina”, caracterizada por um corpo circulante entre lugares e não-lugares (AUGÈ, 1994), transitando entre espaços físicos e virtuais, num mosaico de horários intensos e despadronizados.
Em face desses cenários discursivamente conflitantes, o “mundo real” de trabalho, na contemporaneidade, tende a se apresentar como um grande amálgama do velho com o novo, em que, por vezes, se torna difícil discernir o que se mantém do capitalismo burocrático e seu correspondente “sistema produtivo-organizacional-gerencial” tayloristafordista; o que já se consolidou do capitalismo flexível e o chamado modelo toyotista; e, mais ainda, o que extrapola a esses dois modelos.
A forma como ocorreu a introdução do taylorismo e também a implementação da linha de montagem fordista sempre foi alvo de debates entre os historiadores do trabalho, pois não é fácil avaliar a dimensão desse modelo produtivo, que afetou as organizações de maneira desigual (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009) e também as vivências operárias de maneira particularizada. Para Dejours (1992), não há uma “vivência operária que seria um denominador comum a todas as situações de trabalho” (DEJOURS, 1992, p. 12).
Merlo e Lapis (2007) enfatizam que a percepção de que o trabalho tem consequência sobre a saúde dos indivíduos já é antiga. De fato, Dejours (2014) situa os primórdios do interesse pelo tema no que chama de “pré-história da saúde dos trabalhadores”, situando no século XIX um foco restrito à dimensão da redução da jornada de trabalho da classe operária. Após um século marcado por lutas operárias com essa pauta, “só a partir do fim do século são obtidas leis sociais pertinentes, especificamente, à saúde dos trabalhadores (DEJOURS, 1992, p. 17)”.
Já no contexto do taylorismo, dominante em boa parte do século XX, a pauta da saúde do trabalho inicia centrada na proteção do corpo para depois evoluir para a saúde mental, pois, como afirma Dejours (1992, p. 18-19), o taylorismo se tratava de uma
Nova tecnologia de submissão, de disciplina do corpo, a organização científica do trabalho gera exigências fisiológicas até então desconhecidas, especialmente as exigências de tempo e ritmo de trabalho. As performances exigidas são absolutamente novas, e fazem com que
o corpo apareça como principal ponto de impacto dos
prejuízos do trabalho.
Dentre as principais fontes de sofrimento no trabalho estaria, portanto, a rigidez inerente ao taylorismo. Dejours (1992) entende que a organização científica do trabalho gera exigências de tempo e ritmo de trabalho que podem trazer prejuízos para o corpo. Esse esgotamento
Durante e Teixeira (2008) abordam que o indivíduo no trabalho é um ser global, possuidor de necessidades, expectativas, interesses, e precisa desenvolver-se nos aspectos afetivo, psicológico, físico e cognitivo. Ao se tratar os indivíduos como atores previsíveis e passíveis de controle, suas particularidades são desconsideradas. Desta forma, esse modelo de gestão atrelado ao taylorismo aliena o trabalhador ao mesmo tempo em que se impõe e explora.
Com relação à fragmentação da tarefa, essa poderá conduzir para dois sofrimentos específicos: o medo e a monotonia. No que tange à monotonia, ela ocorre pelo intenso ritmo de trabalho, tarefas parceladas, rotina burocrática, controle e movimentos repetitivos. Já com relação ao medo, ele é encarado por dimensões. Uma das dimensões relaciona-se ao desgaste mental e equilíbrio psicoafetivo; outra dimensão aborda o medo específico que se relaciona à desorganização do funcionamento mental, causado pela autorrepressão e pelo esforço para conduzir comportamentos de forma condicionada; por fim, tem-se a dimensão que se refere à deterioração física (MERLO; LAPIS, 2007).
Os operários estão sujeitos a desenvolverem a despersonalização do trabalho, trazendo consequências para a saúde física e mental, podendo ocasionar esgotamentos e fadigas físicas, tensão, angústia, medo, frustração, úlceras e gastrites nervosas, finalizando com o processo de isolamento do indivíduo (MAROCHI, 2002).
De acordo com Dejours (1992, p. 39),
[...] o homem no trabalho, artesão, desapareceu para dar à luz a um aborto; um corpo instrumentalizado – operário de massa – despossuído de seu equipamento intelectual e de seu aparelho mental.
Segundo o autor, diante do cenário de desapropriação do saberfazer, de desmantelo da coletividade operária e quebra da organização trabalhista, o modelo taylorista forma-se apenas de indivíduos isolados e sem iniciativa, podendo ser forte impulsionador do sofrimento no trabalho. Além desses aspectos, Dejours (1992) cita que o sofrimento,
Quadro 1 – Síntese das dimensões da PDT no sistema taylorista-fordista
Dimensões de contexto è Dimensões de conteúdo ê | Condições de trabalho | Organização do trabalho | Relações de trabalho |
Carga psíquica | Tensão Angústia | Pressões Imposições | |
Prazersofrimento | Prazer: Comportamento livre autorizado Conteúdo significativo da tarefa Sofrimento: Falta de identidade Alienação Medo Monotonia Frustração Sensação de incompetência | ||
Saúdeadoecimento | Condições físicas precárias de trabalho | Fadiga física Lesões por esforço repetitivo Deterioração física (úlceras, gastrites) Esgotamento mental | |
Estratégias de defesa | Aumento da produtividade | Isolamento |
Fonte: Elaboração própria (2016).
Quanto ao contexto do capitalismo flexível, Flach et al. (2009)
elencam fatores indutores do sofrimento no trabalho dentro do
contexto da globalização, tais como: exigência por maior qualificação, competitividade, diminuição dos locais de trabalho, etc. Bouyer (2010) aborda que as novas patologias do mundo contemporâneo envolvem
a imaterialidade do trabalho, sendo predominantemente de forma
subjetiva. O autor aborda que as atividades do mundo contemporâneo
afetam a saúde mental dos trabalhadores por determinados fatos, tais
como: a dificuldade em utilizar recursos para a sublimação (defesa) e a falta de reconhecimento.
A PDT prega a relação entre o funcionamento psíquico e a rigidez do controle, e enfatiza que, quando o segundo termo se exacerba, pode comprometer a saúde do trabalhador. Mas como o controle tem se manifestado nos novos modelos, nos novos tempos, se são tempos em que se fala de empoderamento e autogestão do trabalhador?
Para autores como Bouyer (2010), o que está havendo é uma “retaylorização” de aspectos que envolvem o trabalho, contudo, sob disfarces de sistemas modernos e automatizados. Essa volta atualizada do taylorismo envolve tempos, movimentos, cadências e gestos do
trabalho aplicados aos diferentes tipos de serviços, especialmente
aqueles mediados pela tecnologia da informação. Para Batista-dos-Santos et al (2015), as organizações flexíveis estruturadas em sistemas integrados de gestão, na verdade, tipificam uma atualização sofisticada da forma burocrática de organização na contemporaneidade, em que se
evidencia que
trabalhadores envolvidos em processos de implantação tecnológica, ao estilo sistemas ERP, tendem a se envolver em contextos de elevada carga psíquica, com vivências alternantes de prazer-sofrimento mediados por estratégias de defesa que, nesse grupo pesquisado, foram: de racionalização, de negação e hiperatividade. A desistência emergiu como estratégia limite frente ao risco de sofrimento patogênico e adoecimento (BATISTADOS-SANTOS et al, 2015, p. 1).
Bernardo (2009), em estudo empírico com trabalhadores de empresas regidas pelo sistema japonês, discorre sobre resultados da análise do discurso obtido em entrevistas. A autora aborda que expressões como assédio moral, pressão psicológica e humilhações foram termos recorrentes. Há excesso de responsabilidade e apreensão relativa à “humilhação”, além do excesso do ritmo de trabalho e sentimento de desvalorização enquanto profissionais. Apesar de haver redução do número de operações que compõem os processos, a redução do tempo para executar as atividades totais é desproporcional. Para as organizações, há uma busca pela superação das metas de produção.
Além dessas imposições, há ameaças acerca de demissões. Pode-se dizer que se vivencia uma “escravidão oculta”.
Expressões como ritmo frenético, trabalho incessante, loucura, desespero, estresse e depressão foram utilizadas pelos trabalhadores para caracterizar o ambiente de trabalho. “As organizações flexíveis estabelecem relações de trabalho bem perversas, pois, na medida em que estão impregnadas de contradição, mantêm os trabalhadores em um estado de inquietude permanente que os expõe a um sofrimento psíquico real” (BERNARDO, 2009, p. 151). Sob as lentes da PDT, o sofrimento daqueles que estão submetidos a essas condições de trabalho, próprias ao modelo japonês, assume novas formas inquietantes que evocam o medo (BERNARDO, 2009).
Merlo e Lapis (2007) trazem abordagens, como individualismo e competitividade, que são consequências do novo espírito do capitalismo, que estaria, por conseguinte, causando o desaparecimento de carreiras estáveis e duradouras, o que, para Sennett (2002), acarreta no risco da corrosão do caráter do indivíduo pela impossibilidade de estabelecimento de vínculos duradouros.
Apsicodinâmica envolve ainda o prazer no trabalho e, relacionando a isso, o toyotismo aborda a diminuição de acidentes de trabalho, ambientes laborais mais bem estruturados no que tange à higiene, iluminação e espaço, nos quais o trabalhador braçal é substituído por indivíduos uniformizados. De fato, o medo de acidentes tornou-se relativamente retórico. Contudo, hoje, o sofrimento acontece na psique. Há o medo pela incompetência, medo de não obedecer às imposições, ao ritmo, ao desempenho esperado, aos conhecimentos mínimos exigidos, às instruções exigidas, e de não ter habilidade das relações interpessoais. Hoje há uma competição entre os próprios funcionários, ou seja, há um individualismo exacerbado. A falta de reconhecimento é um fator preponderantemente responsável pelo sofrimento no trabalho. Há ainda o binômio sofrimento-defesa, em que o mecanismo de defesa é desenvolvido nos indivíduos como forma de proteção, transformando
Para Dejours (1992), há na polivalência uma desqualificação com relação às preocupações trabalhistas para encobrir formas de exploração, ou seja, o indivíduo esconde a exploração que lhe é dada pela aprendizagem de novas tarefas e aumento de atividades delegadas. No contexto atual, o sentido do trabalho tornou-se ilegível, e este aspecto emocional faz com que os trabalhadores não saibam sua direção. Contudo, no quesito operacional, as demandas parecem ser bastante claras (SENNETT, 2002).
Sobre o prazer existente nesse modelo de produção, Dejours (1998) aborda que só haverá prazer diante da aplicação das aptidões físicas e psicossensoriais se existir uma relação entre o prazer e o conteúdo significativo da tarefa. Mendes (1995) afirma que o prazer está atrelado à satisfação de necessidades que são representadas pelos sujeitos. Há uma possibilidade do trabalhador transformar o sofrimento não suportado em criatividade, ou seja, em prazer. Além desses aspectos, o trabalhador pode utilizar a inteligência operária e o processo de reconhecimento simbólico como formas de transformar o sofrimento em prazer no ambiente de trabalho.
O quadro 2 sintetiza os conteúdos identificados na literatura
consultada sobre as dimensões da psicodinâmica do trabalho no sistema
toyotista.
Quadro 2 – Síntese das dimensões da PDT no sistema toyotista
Dimensões de | |||
contexto è | Condições | Organização | Relações |
Dimensões de | de trabalho | do trabalho | de trabalho |
conteúdo | |||
ê | |||
Carga psíquica | Pressão subjetiva | ||
Prazersofrimento | Flexibilidade na manipulação das ferramentas | Prazer: Mais autonomia Possibilidade do trabalho intelectual Tomada de decisões Sofrimento: Assédio Moral | Prazer: Reconhecimento simbólico Eliminação dos níveis hierárquicos Sofrimento: Falta de |
Humilhação Medo da incompetência Medo do desempenho insatisfatório Aumento de atividades | reconhecimento Medo de não ter habilidades nas relações interpessoais | ||
Saúdeadoecimento | Saúde: Diminuição de acidentes Melhores condições de higiene Adoecimento: Depressão Estresse | Intensificação do tempo de trabalho | Corrosão do caráter (ausência de relações duradouras) |
Estratégias de defesa | Racionalização Negação Hiperatividade | Individualismo Competitividade Desqualificação das questões trabalhistas |
Fonte: Elaboração própria (2016).
Levando-se em consideração o objeto inicialmente proposto, que consistia em estudar a psicodinâmica do trabalho nas fases do capitalismo, analisando-se comparativamente o taylorismo-fordismo e
o toyotismo nos contextos do capitalismo burocrático e do capitalismo
flexível, tem-se que a pesquisa alcançou seu objetivo por meio das análises de conteúdo realizadas.
No contexto do modelo de produção taylorista-fordista, a PDT mostra-se presente nas diferentes dimensões do trabalho. Na dimensão organização do trabalho, há uma carga psíquica de tensão e angústia. No que tange o prazer, tem-se o comportamento livre autorizado do trabalhador e o conteúdo significativo da tarefa. Quanto ao sofrimento, envolve a falta de identidade, a alienação, o medo, a monotonia, a frustação e a sensação de incompetência. Com relação à saúdeadoecimento, poderá ocorrer desenvolvimento de fadiga física, lesões por esforços repetitivos, deterioração física, como úlceras e gastrites, e esgotamento mental. Quanto às estratégias de defesa, emerge o aumento da produtividade por parte dos trabalhadores. Na dimensão condições do trabalho, a dimensão de conteúdo da PDT que possui associação é a saúde-adoecimento, devido às condições físicas precárias de trabalho que são oferecidas aos indivíduos. E sobre as relações de trabalho, a carga psíquica mostra-se como um dos pontos que podem ser afetados, mediante pressões e imposições. A estratégia de defesa pode se manifestar nessa dimensão do trabalho através do isolamento do indivíduo.
Já no modelo de produção toyotista, o sofrimento baseia-se principalmente na psique. Na dimensão condições de trabalho, as dimensões de conteúdo que enfatizam envolvimento são o prazersofrimento baseando-se na flexibilidade da manipulação das ferramentas. Adimensão de saúde-adoecimento poderá gerar diminuição de acidentes e melhores condições de higiene, contudo, poderá causar também depressão e estresse.
Sobre a dimensão organização do trabalho, a carga-psíquica
poderá ser afetada por meio das pressões subjetivas que podem haver
dentro das organizações. Com relação à manifestação de prazer, essa
poderá ocorrer mediante a autonomia dada ao trabalhador com a
possibilidade de trabalho intelectual e tomada de decisões. No que tange
ao sofrimento, tem-se o medo pela incompetência e pelo desempenho
insatisfatório, assédio moral, humilhação, além do aumento do número de atividades que são delegadas aos trabalhadores. Na dimensão de conteúdo saúde-adoecimento, a organização do trabalho impõe a intensificação do tempo de trabalho. Com relação às estratégias de defesa, tem-se a racionalização, a negação e a hiperatividade do indivíduo.
A dimensão relações de trabalho enfatiza associação com o conteúdo prazer, quando os trabalhadores podem alcançá-lo através do reconhecimento que lhes é dado e da eliminação dos níveis hierárquicos, possibilitando uma comunicação entre os chefes e subordinados. Por outro lado, essa dimensão também se relaciona com o sofrimento que poderá haver no ambiente de trabalho com a falta de reconhecimento e medo de não possuir habilidades nas relações interpessoais. Sobre a saúde-adoecimento, tem-se a corrosão do caráter, tão difundida por Sennett (2002), que significa a ausência de estabelecimento de relações duradouras. E com relação às estratégias de defesa, tem-se o individualismo, a competitividade gerada entre os membros e a crescente desqualificação das questões trabalhistas.
Em resumo, quanto ao toyotismo, pode-se afirmar que a PDT é qualitativamente mais complexa do que quando imperava apenas
o modelo de produção taylorista/fordista, dado o peso da dimensão subjetiva e algumas ilegibilidades do contexto de trabalho.
O texto possui como limitações o escopo da pesquisa, por se tratar de um estudo apenas bibliográfico. Contudo, o trabalho apresenta contribuições para o avanço e o aprofundamento do arcabouço teórico da PDT ao considerar analiticamente o contexto histórico e econômico mais amplo (fases do capitalismo) e suas manifestações específicas no contexto organizacional (modelos produtivos e de gestão). O texto contribui ainda para fundamentar estudos empíricos sobre a PDT no multifacetado mundo do trabalho contemporâneo, que se traduz como um grande amálgama de burocracia e flexibilidade, de “taylorismofordismo” e “toyotismo”.
Como proposta para estudos futuros, tem-se: a investigação da PDT em configurações diversas de trabalho, não necessariamente restritas ao contexto de uma organização formal de trabalho. Assim, sugere-se pesquisar sobre a PDT associada ao empreendedorismo individual, às novas formas de carreira, ao desenvolvimento do trabalho em contextos domésticos e/ou virtual. Tal exame certamente possibilitará, a partir da empiria, a atualização das dimensões teóricas de contexto e de conteúdo da PDT.
1 O taylorismo foi antecedido pelo movimento conhecido como works management, o qual se institucionalizou por meio de mudanças específicas dentro das associações profissionais de engenharia em face da demanda de qualificação da mão de obra, após a Guerra de Secessão norte-americana. Uma série de jornais ingleses e norte-americanos da área de engenharia difundiram as novas ideias, de racionalização, organização e controle do trabalho, do works management.
2 O conceito de “não-lugar”, em Augè (1994), se refere a espaços como avenidas, rodovias, aeroportos, hotéis, shoppings, redes de fast-food, caixas eletrônicos etc. Ele afirma: “se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir nem como identitário, relacional e histórico, definirá um não-lugar” (AUGÈ, 1994, p. 73).
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Data de Submissão: 10/06/16 Data de Aprovação: 14/09/16